quinta-feira, 8 de março de 2012

Danica

"Seu cigarro está pra acabar, assim como o turno do astro sol, que vai se pondo ao fundo. Uma visão privilegiada para quem mora no apartamento número 94, da torre 1. Condomínio Joy Dimension. Um dia já foi uma bela réplica dos prédios da famosa orla de Miami Beach. Não haver uma praia ali, era mero detalhe. Já foi um prédio cor salmão, que pela noite, abandonava a cor clara, para gritar com seu magenta neón. Mas isso foram outros tempos e ela nem era residente naquela época. O portal do prédio, estava velho e sujo. Apenas chegando muito perto, era possível uma leitura do pórtico. Era um arco em cor de madeira e o letreiro também da mesma cor. Porém, de noite era outro grito neón, dessa vez verde. Danica lembra ter lido aquilo apenas uma vez, quando chegou com suas malas, acompanhada de três amigas. Todas traziam bagagens e sonhos. As amigas se foram com o tempo e os sonhos também. Eles não caíram na promessa do pórtico do condomínio: “Uma outra Dimensão!”. Bastaram algumas semanas e o apartamento tornou-se mera extensão da realidade. As quatro jovens descobriram a vida no Lacienda. E que uma vez vivendo ali, não escapariam de formas santificadas. E, fora Danica, todas as outras saíram de lá com seus pecados em busca do paraíso. Danica preferia viver no inferno com seus próprios demônios e os dos outros. Não faria como Ana, que foi mandante do assassinato da esposa de seu marido, para que assim, pudessem se casar e ele a sustentasse. Nada contra Ana, as duas ainda se falam normalmente, foram mais amigas e hoje se respeitam. Mas Danica não colocaria tanto esforço por uma “estável”. Não. Lana virou a rainha branca. Começou a vender cocaína durante as noites, entre um intervalo de um programa e outro. Ficou “famosa” demais pela cidade, resolveu mudar para Europa. Com os contatos certos, o corpo quase perfeito e sua habilidade com facas, logo tornou-se “La Reine Blanche”. Engraçado era que ela não usava drogas. Quando cheirou pela primeira vez, enquanto estava em um hotel em Nice, comemorando a maior venda de sua vida, ela teve uma arritmia cardíaca e morreu. Barbie, foi a primeira a sair. Usou de seu corpo para pagar bons estudos. Hoje é uma vice-presidente da maior imobiliária do país. Nunca mais ela pisou novamente em Lacienda e fez uma visita para Danica. Todas foram viver com seus pecados no paraíso, Lana já na versão 2.0. O cigarro de Danica atinge o filtro, o sol se foi, a noite chega e o celular pode tocar a qualquer momento. Ela descola o tórax da janela e desliza o vidro que a fecha. Não há mais as cortinas floridas que ela trouxe de sua casa. Certa vez bebeu tanto, no nascer do sol, que ascendeu um cigarro e o foi ver a aurora do dia. Distraída, deixou o cigarro ao lado do braço direito. Adormeceu ali mesmo e só acordou com o cheiro de tecido queimado. Queimou o único resquício de sua adolescência. Porém, ela realmente não ligava para isso. Não mais. Com a ajuda das luzes da noite, ela tateou procurando o interruptor e o empurrou para cima. Uma luz fraca surgiu no teto do apartamento. Era entre o amarelo e o laranja, não se decidia. Apesar de fraca, foi suficiente para Danica avistar o sofá. Estava envolto em um lençol azul marinho e dividia a sala apenas com a TV. Haviam mais coisas ali, na época de ouro. Quando, uma a uma, as meninas foram saindo, algumas coisas também foram. Mas a maioria, Danica trocou por drogas e dinheiro. Dinheiro que logo virou bebida. Agora ela podia contar nos dedos as coisas que haviam no apartamento. Sofá velho, lençol azul marinho, pequena mesa retangular, que era suporte da TV usada e velha. Antes, era uma televisão bem mais nova, muito bonita. Virou um saquinho de açucar, com resquícios de cocaína. Depois de alguns dias, a abstinência do quadrado mágico, foi maior do que a abstinência de crack e Danica conseguiu a velha televisão usada, ficando assim, estável. Havia uma cama arrumada, mas raramente usada. Danica gostava de dormir no sofá, assistindo ao talk-show do Skinny. Ao lado do sofá, um cinzero preso em um pedestal. E era só, mais nada. Danica deitou-se ao sofá e procurou algo com sua mão próxima às nádegas. Não encontrou, pois aquilo não existia mais. Levantou-se, foi até a TV. Apertou o botão preto que estava próximo à pequena luz vermelha. A princípio não houve imagem, apenas o som de risadas falsas. Pelo horário, era o seriado “Missy Mississipi”. Mais uma reprise. Era tão velho, preto e branco, sem graça, de tanto que fora reprisado. Danica odiava o seriado. Voltou ao sofá e deitou-se novamente. A imagem surgiu de repente na tela preta. Sua calcinha estava com o lado esquerdo sendo engolido por suas flácidas nádegas. Ela meteu a mão por debaixo da calça, ajeitou a roupa de baixo e ficou assistindo “Missy Mississipi”. Riu de algumas piadas, ascendeu mais um cigarro. Começou a escutar tiros do lado de fora, carros passando correndo. Uma noite quente de verão. O mundo se agita o triplo do habitual. Sentiu vontade de urinar. Levantou-se e foi até o banheiro. Baixou as calças com força, para ter certeza de que levava a calcinha junto e sentou no vaso limpo. Era uma casa limpa, apesar da precariedade do prédio e da falta de móveis. Aliviou-se, tragando seu cigarro. Não era o favorito. “Ei, Lucky, me vê um maço de Liberty”, ela perguntou. “Jan, sinto muito xuxu, mas acabou meu estoque de Liberty”. Ela pensou, que deveria parar de comprar cigarros com Lucky. Ele já foi um bom revendedor, mas perdeu espaço nos últimos anos. “Ele não tinha tanta sorte assim” ela pensava enquanto a urina dourada descia de sua vagina. “Então me da um Boulevard mesmo”. Ela não suportava um Boulevard. Até o nome, ela não suportava. Gosto ruim, cheiro ruim, tudo ruim. “Por que merda eu pedi um Boulevard, então? Eles são mais baratos Dani, você sabe disso.” Terminou o cigarro e terminou de urinar. Danica levantou-se, subiu a calcinha e depois sua calça preta. Puxou a descarga, enquanto puxava outro cigarro do maço. Tossiu. “Isso que dá fumar, Danica. E ainda por cima, fumar um maço de Boulevard.” Era o último. Ascendeu-o e depois foi lavar as mãos. Jogou uma água no rosto e tentou se olhar no espelho, mas este estava todo trincado. Haviam dez Danicas ali e ela ficou com preguiça de analisa-las. Andando vagarosamente para seu sofá, ela assistia de longe os créditos do seriado, mas não ficou nem feliz e nem triste com isso. De sopetão, a caixa preta apagou-se. Danica suspirou, como quem já se cansou de algo. Já haviam dias em que a TV estava com esse surto de desligar-se sozinha. Continuou sua caminhada desprenteciosa. Quando estava à frente do aparelho, agachou-se e viu-se com o reflexo da tela. Notou alguns furinhos na sua face. Não muitos, mas um sinal da idade. O cabelo estava preso com um coque. A cor oscilava entre um loiro falso e o castanho escuro veridadeiro da raiz. Os olhos, pequenos e escuros. Usava um top cinza decotado. Apalpou os seios, para certificar-se de que o implante continuava ali. Ainda imaginava que um dia, a coisa ia escapar dali e sair quicando pela sala ou pior, durante um programa. Ela ainda travava quando um cliente, afoito por peitos, metia os dentes e os apertava. Estavam firmes, do jeito que ela e os outros gostam. Estava a mesma coisa de sempre, nenhuma novidade. Ligou a TV de novo, tornou a deitar-se ao sofá, fumando o último Boulevard. Agora, o programa era “Lei da Sobrevivência”. Pequenos documentários de pessoas que sobreviveram à uma provação horrível da vida. Danica nunca via algum programa sobre sobreviventes do Lacienda. Quem sabe hoje? É, ela tinha algumas pequenas expectativas da vida que a faziam esquecer certos absurdos. O programa estava pra começar, a abertura no seu encerramento. Quando o narrador pôs-se a falar, o celular tocou. Hora de trabalhar."